Fala pessoal! Marco Dominoni trazendo aqui um tema que vai cair nas provas dos próximos concursos – Defensorias – Magistraturas – MP – Área Policial!
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA. PRIMEIRA FASE. AUMENTO DA PENA-BASE. NEMO TENETUR SE DETEGERE. DIREITO DE MENTIR. INEXISTÊNCIA. TOLERÂNCIA JURÍDICA NÃO ABSOLUTA. SUPOSTA MENTIRA DO RÉU NO INTERROGATÓRIO. ATRIBUIÇÃO FALSA DE CRIME A OUTREM. VALORAÇÃO COMO CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL NEGATIVA. IMPOSSIBILIDADE. FATO NÃO COMPROVADO E POSTERIOR AO DELITO IMPUTADO NA DENÚNCIA. FUNDAMENTO INIDÔNEO. ORDEM CONCEDIDA.
Foi publicado agora no mês de setembro/2023 o seguinte julgado, cuja ementa segue abaixo e é muito rica em conteúdo:
- “O direito a não se autoincriminar (do qual deriva, por lógica, o direito ao silêncio) é regra antiga e inerente ao processo penal de cariz democrático e racional.
Constitui, nos dizeres de Ferrajoli, “a primeira máxima do garantismo processual acusatório, enunciada por Hobbes e recebida desde o século XVII no direito inglês” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal, tradução coletiva, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 486). - Se, por um lado, a sua estatura é incontroversa, por outro, os seus limites geram acirrados debates na doutrina, especialmente no que concerne ao exercício da autodefesa no interrogatório.
- Não é adequado admitir que haja, propriamente, um “direito de mentir”. A rigor, o que existe é uma tolerância jurídica – não absoluta – em relação ao falseamento da verdade pelo réu, sobretudo em virtude da ausência de criminalização do perjúrio no Brasil, conduta cuja tipificação penal é objeto de alguns projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional (por exemplo: PL 3148/21 e PL 4192/2015).
- Tolerância não absoluta porque, em algumas oportunidades, a própria lei cuida de atribuir relevância penal à mentira ou outras formas de encobrir a verdade. É o que ocorre, por exemplo, nos crimes de autoacusação falsa (art. 341 do CP) e falsa identidade (art. 307 do CP), ainda que praticado este em nome da autodefesa (Súmula n. 522 do STJ: “A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa”). Também é o que sucede nas hipóteses em que, para defender-se, o acusado comete fraude processual (art. 347, parágrafo único, do CP) ou coage testemunhas (art. 344 do CP), a evidenciar que, se, por um lado, o nemo tenetur se detegere é garantia fundamental, por outro, encontra importantes limitações no ordenamento jurídico pátrio.
- De todo modo, ainda que o falseamento da verdade eventualmente possa – a depender do caso e se cabalmente comprovado – justificar a responsabilização do réu por crime autônomo, isso não significa que essa prática, no interrogatório, autorize a exasperação da pena-base do acusado.
- O conceito de culpabilidade, como circunstância judicial prevista no art. 59 do Código Penal, está relacionado com a reprovabilidade/censurabilidade da conduta do agente, de forma que deve o magistrado, quando da aplicação da pena-base, dimensioná-la pelo nível de intensidade da reprovação penal e expor sempre os fundamentos que lhe formaram o convencimento. Trata-se de aferir o grau de reprovabilidade do fato criminoso praticado pelo réu.
- No caso dos autos, de acordo com a sentença, a culpabilidade do acusado foi valorada negativamente sob o argumento de que ele “tentou se furtar à responsabilização penal, imputando falsamente a um terceiro (seu vizinho J.) a responsabilidade por ter “plantado” as drogas e armas em sua casa na noite anterior ao cumprimento do mandado de busca e apreensão pela polícia. Essa conclusão, no sentido de ser uma falsa imputação, restou comprovada pelo depoimento de J. em juízo, o qual nada referiu sobre as alegações do réu” (fl. 275).
- De início, cabe salientar que a simples circunstância de o vizinho haver negado esses fatos quando ouvido em juízo na condição de informante não permite afirmar a falsidade da versão do acusado; até porque, se houvesse confirmado a alegação do réu, tal depoente – que nem sequer prestou compromisso de dizer a verdade – estaria admitindo a prática de crime e passaria a ocupar o lugar do paciente como imputado. Assim, se, de um lado, a negativa do terceiro enfraquece a hipótese fática alternativa apresentada em autodefesa pelo paciente, de outro, não é suficiente para responsabilizá-lo penalmente pelo que disse no interrogatório.
- Do contrário, toda vez que qualquer réu alegasse haver sofrido algum tipo de abuso policial e a prática desse abuso fosse negada pelo respectivo agente de segurança por ocasião de seu testemunho – situação absolutamente corriqueira no cotidiano da praxe forense -, isso bastaria para incrementar a pena do réu ou mesmo fazer-lhe incorrer em crime autônomo. Restaria ao interrogado somente confessar, ficar em silêncio ou, no máximo, negar de forma vaga e genérica a imputação, a fim de não incorrer em possível delito, o que representaria grave fator de intimidação contra a exposição de possíveis ilegalidades praticadas por agentes estatais na persecução penal.
- Estendido esse raciocínio às audiências de custódia, nas quais um dos propósitos centrais da oitiva do preso é justamente o de verificar a legalidade da prisão em flagrante e a possível ocorrência de abuso, essa finalidade primordial seria em boa medida frustrada, diante do risco que representaria para o indivíduo alegar qualquer violência: uma simples negativa do policial levaria o autuado a responder por mais um crime ou ter sua futura reprimenda agravada. No cenário atual, em que a veracidade da palavra dos policiais ainda é vista como dogma praticamente inquestionável por muitos tribunais, alegar a ocorrência de abuso seria demasiadamente arriscado para o preso, o que implicaria o aumento das já elevadas cifras ocultas da tortura praticada por agentes estatais.
- De toda sorte, ainda que, por hipótese, se pudesse considerar provado que o réu atribuiu falsamente crime a terceiro no interrogatório (o que não é o caso), tal acontecimento não diria respeito à sua culpabilidade, a qual, conforme assentado anteriormente, relaciona-se ao grau de reprovabilidade pessoal da conduta imputada ao acusado. Isso porque o interrogatório constitui fato posterior à prática da infração penal, de modo que não pode ser usado retroativamente para incrementar o juízo de reprovabilidade de fato praticado no passado.
- Com efeito, o exame da sanção penal cabível deve ser realizado, em regra, com base somente em elementos existentes até o momento da prática do crime imputado, ressalvados, naturalmente: a) o exame das consequências do delito, que, embora posteriores, representam mero desdobramento causal direto dele, e não novas e futuras condutas do acusado retroativamente valoradas; b) o superveniente trânsito em julgado de condenação por fato praticado no passado, uma vez que representa a simples declaração jurídica da existência de evento pretérito.
- Nem mesmo nas circunstâncias da personalidade ou da conduta social seria possível considerar desfavoravelmente a mentira do réu em interrogatório judicial. O paralelo feito por alguns doutrinadores com a confissão (se a confissão revela aspecto favorável da personalidade e atenua a pena, a mentira supostamente revelaria o oposto e poderia autorizar o seu aumento), embora interessante, é assimétrico e não permite que dele se extraia tal conclusão.
- A confissão e diversos outros institutos que permitem o abrandamento da sanção (colaboração premiada, arrependimento posterior etc.) integram o chamado Direito penal premial e se justificam como ferramentas para valorizar e estimular a postura que o réu adota depois da prática do delito para mitigar seus efeitos ou facilitar a atividade estatal na sua persecução. Diferente, porém, é a análise sobre o que pode legitimar o incremento da sanção penal, a qual, nos termos dos mais basilares postulados penais e processuais penais, não pode ficar ao sabor de eventos futuros, incertos e não decorrentes diretamente, como desdobramento meramente causal, do fato imputado na denúncia (por exemplo, nos termos acima esclarecidos, as consequências do crime).
- O que deve ser avaliado é se, ao praticar o fato criminoso imputado, a culpabilidade do réu foi exacerbada ou se, até aquele momento, ele demonstrava personalidade desvirtuada ou conduta social inadequada, o que não pode ser aferido retroativamente com base em fato diverso que só veio a ser realizado em tempo futuro, às vezes longos anos depois (no caso, o crime foi praticado em maio de 2013 e o interrogatório do réu ocorreu em agosto de 2019, mais de 6 anos depois).
- Ordem concedida para reconhecer a inidoneidade do fundamento usado para exasperar a pena-base e reduzir a sanção do réu a 5 anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, e 500 dias-multa, nos autos da condenação objeto do Processo n. 0000012-53.2014.8.21.0134.” (HC n. 834.126/RS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 5/9/2023, DJe de 13/9/2023.)
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